DURKHEIM, MARX E WEBER ASSISTEM BACURAU

O texto do nosso próximo encontro é BACURAU, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Um filme para uma aula de teoria sociológica. A perspectiva metodológica propõe o acesso a temas e conceitos sociológicos através da linguagem cinematográfica. Cineastas pensam e possibilitam uma introdução à sociologia através dos seus filmes. Julio Cabrera diz o mesmo em relação à filosofia. Trabalhar no e com o cinema, na companhia de Edgar Morin. Para abrir as ciências sociais e em sintonia com o pensamento complexo, o sociólogo rompe barreiras entre os campos do conhecimento e promove um diálogo entre pensadores de diferentes linguagens. “A imagem-movimento” pensante de Gilles Deleuze. Tudo o que diz respeito ao humano é focalizado no écran cinematográfico. Émile Durkheim e Ingmar Bergman, com diferentes lentes focais, abordaram a questão do suicídio. Karl Marx e Costa-Gavras produziram críticas às relações capitalistas. Acordaram em torno do seguinte discurso de “O Capital”: “Vamos continuar roubando os pobres para dar aos ricos”. Max Weber e Akira Kurosawa promoveram reflexões sobre o poder. Michel Foucault entra no debate acompanhado de William Shakespeare. “Auxílios luxuosos” nas reflexões sociológicas em tela. Ampliar é verbo chave quando propomos o aprofundamento das mais belas questões da sociologia pela via da aproximação dialogal entre produtores artísticos e científicos. O “cinefilô” de Ollivier Pourriol transportado para a imaginação sociológica. Nas telas, a estrela é o homem imaginário. Sem criar hierarquias entre os discursos visuais e os sociológicos, valorizamos as singularidades textuais que apresentam. Sensibilidades diversas na abordagem das questões relevantes e emergentes que fazem parte dos nossos shows cotidianos.

BACURAU lido pela ótica da sociologia do conflito de Karl Marx. A dimensão político-ideológica do cinema lida pelo pensamento sociológico clássico. O cineasta, atento aos sinais dos tempos em que vive, apresenta o seu compromisso com o desvendamento das máscaras sociais. Falo do artista, “intelectual orgânico”, explicitamente engajado em um projeto de transformação social, do lado das classes dominadas e excluídas. Tal como um pedagogo dos oprimidos, as suas imagens telânicas apresentam um potencial descortinador das relações de exploração no modo de produção capitalista. No plano ideológico, cineastas trabalham em várias direções. Dentre estas, encontramos os produtores comprometidos com os interesses ocultadores das classes dominantes. Estas, no uso dos seus aparelhos ideológicos, contam com a colaboração dos que, identificados como artistas, atuam enquadrados no projeto político dos dominadores. Os produtores de cinema investem dentro de estruturas contraditórias e conflitivas. O campo artístico é uma arena de tensões. Disputas, concorrências e transações entre correntes de pensamento fazem parte das relações estabelecidas entre os criadores de arte. Estes apresentam diferentes projetos e concepções artísticas. Dentre estas, produtos com consistência sociológica e crítica. BACURAU é um texto fílmico com densidade política e gerador de incômodos para com os privilegiados em uma sociedade camarotizada, de profundas desigualdades sociais. Um filme disparador de reflexões sobre graves e urgentes questões com as quais lidamos no mundo ambivalente da globalização. Avanços tecnológicos vizinhos das barbáries violentas. Drones sobrevoando território de carnificinas. Escassez de alimentos e remédios da parte de quem carrega aparelhos celulares. O olhar de superioridade do branco que fala inglês sobre os habitantes de uma cidade interiorana de Pernambuco. A reação da população local e suas lideranças contra o político enganador, desacreditado e decepcionante. BACURAU é um dos nossos brasis.

Quais os objetivos de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com a realização de BACURAU? Pensando no conceito de ação social de Max Weber, um filme é o produto final de uma ação racional com relação a fins. O processo produtivo de uma obra fílmica é resultado de inspiração e transpiração. Sangue e suor. Muito trabalho. Cineastas são arteiros trabalhadores. Da captação de recursos ao espaço de exibição, é tempo gasto e o envolvimento de uma grande quantidade de técnicos e funcionários especializados. Recursos humanos que vão dos profissionais da maquiagem até os motoristas. Um empreendimento empresarial, burocrático, hierárquico. Um modelo industrial a ser administrado pelos empreendedores cinematográficos. Negócios da indústria cultural. Sentados no escurinho do cinema, diante do olho mágico da sétima arte, descuidamos dos bastidores do longo processo percorrido pelos realizadores para que o filme chegue a uma sala de projeção. Produção mediada de delícias e dores. À luz da sociologia compreensiva weberiana, destaco a racionalidade do investimento artístico, fruto de planejamentos e cálculos. Imaginação artística cerebral, movida a cálculos monetários, objetivos. BACURAU é uma realização feita com o coração e a cabeça. Um rebento de um amor exigente, cansativo, de ais gozosos e dolorosos.

“Ah, se a política fosse simples assim. Eu queria ver você, aqui no meu lugar. O buraco é mais embaixo, minha gente”. Fala de Tony Jr., candidato à reeleição para prefeito, dirigida ao povo de Bacurau. Do ponto de vista weberiano, convicção e responsabilidade são qualidades do “homem autêntico”. Estamos falando de ética. Tony Jr. é o personagem, tomando como base a reação popular, representativo de um fazer político irresponsável. O poder “pelo próprio poder”. Para seu deleite egoísta e prestígio pessoal. No dia em que Tony Jr. foi fazer propaganda eleitoral em Bacurau, a sua população ficou dentro de casa e ele não teve plateia para o seu comício. A avaliar pelas adjetivações a ele dirigidas, percebemos a rejeição dos eleitores a mais um mandato para ele. De dentro das casas foram emitidos os seguintes qualificativos : “Safado, tinhoso, filho da puta!”, cabra safado!, filho de uma rapariga!, Bandido!. Xingamentos reveladores de uma decepção relacionada a uma forma de fazer política, descomprometida dos ideais coletivos. Tony Jr. é o representante do político clientelista, nepotista, favoritista. A resistência populacional ao seu nome ganha a empatia do público que assiste BACURAU porque a tela projeta a imagem de um personagem modelar e representativo de um grande número de políticos da nossa vida cotidiana. O que os bacurauenses disseram e fizeram com Tony Jr. é o que parte da plateia, que vê o filme, gostaria de falar para uma grande parte dos políticos que dizem ser os representantes do povo. E seguem mais expressões da recusa a Tony Jr: “Desapareça, rapaz!, Respeite seu avô, porra!, Saia daqui, rapaz!, Miserável!”. Os Tonys Juniores da política partidária usam o poder como meio ao serviço de que fins? O esforço, a tenacidade e a energia que utilizam atendem a quais interesses? O político convicto e responsável, ético, na visão de Weber, encara a sua vocação para “atravessar grossas vigas de madeira”. Com o cérebro e paixão, faz do poder um meio a serviço da pronúncia do pronome nós.

BACURAU na visão do estrangeiro branco, de língua inglesa, do centro metropolitano. Ele olha para a periferia do mundo com o seu olhar imperialista, etnocêntrico, de quem se vê como superior. Mentalidade colonialista. A “civilização” dominadora, rica, do primeiro mundo capitalista. O Oeste de Pernambuco, onde fica localizada BACURAU, a “cidadezinha cu de mundo inofensiva”. Este é o olhar do opressor “globarbarizado” na sociedade das ambivalências, de progressos e regressões. Tecnologia de ponta e ajudas alimentícias e medicamentosas com prazo de validade vencidos. Drones vigilantes a serviço das violências, mortes e medo. Os invasores armados atuando em um projeto de extermínio. Do oprimido parte a seguinte indagação: “Por que vocês estão fazendo isso?”. Violência gratuita, espetacularizada, lucrativa. Qual a lógica embutida na invasão de um território esquecido pelo poder público? Tal como “ovelhas sem pastor”, a comunidade bacurauense sobrevive da intrepidez das suas lideranças locais. Médica e professor, dentre outros sujeitos, são os cabras da peste locais. Conjugadores do verbo resistir. As autoridades públicas viram as costas para os interiores profundos dos nossos brasis. Daí as migrações para as “maravilhosas” capitais sulistas. E por falar no pessoal do sul brasileiro, orgulhoso da sua ancestralidade europeia germânica e italiana, como será que ele é considerado pela pureza do louro europeu? Em BACURAU, a dupla assassina procedente da rica região sulista brasileira, é colocada no seu devido lugar diante da supremacia branca e “pura” do louro made in U.S.A.

BACURAU tem um conjunto de marcantes personagens. Um deles é o da Doutora Domingas. Chegada a uma bebida alcoólica e tendo um caso amoroso com a mulher responsável pelo museu do lugar, ela exerce a medicina de um modo a distar do glamour de um atendimento médico mercantilizado e elitista. Médica que dá uma receita básica para quem está de ressaca: Beber muita água e vomitar. Interfere a favor da prostituta que está sendo levada, contra a sua vontade, para fazer um programa. Com o pé no chão na vida da comunidade, ela representa o profissional simples, despojado e presente nas lutas cotidianas do povo que assiste. Cabe a ela a exposição de uma crítica ao político irresponsável que distribui medicamentos sem atentar para os efeitos colaterais do uso indevido das drogas a serem distribuídas. É o cinema denúncia do descaso com a saúde da população. Ouçamos o discurso da médica responsável e consciente das precárias condições sócio-econômicas dos que estão sob os seus cuidados: “…Mas quero chamar a atenção de vocês para essa caixa de Prazol 4 que Tony Jr. deixou aqui na cidade. …Remédio Tarja preta com distribuição gratuita, sem prescrição médica. Como alguns de vocês já sabem, o Prazol 4 é um inibidor do humor e comportamento só que disfarçado de um analgésico forte. É um remédio consumido no Brasil inteiro por milhões de pessoas e, não me perguntem por que em forma de supositório, que é o que mais vende. Faz mal, vicia e deixa a pessoa lesa. Após jogar a caixa que tem em mãos num recipiente de lixo, prossegue: “A caixa tá aqui. Quem quiser, pegue. Mas o recado tá dado”. O descaso com a saúde da população, por parte dos poderes públicos, recebe tratamento visual e discursivo. Na tela, imagens de um cenário brasileiro desassistido. Na atuação profissional de Domingas, um exercício humanizado de quem atua conhecendo o contexto em que pisa. Na medicalização social de uma sociedade mercantilizada e dopante, Domingas fala em nome dos indignados. É o pensamento sociológico crítico em sua expressividade artística.

BACURAU é um pássaro notívago e brabo. E não está extinto, segundo a informação dada pela dona do bar à dupla de motoqueiros que, vinda de fora, “estrangeiros” em missão assassina, aporta em seu estabelecimento. O seu marido, na sequência, vai ser morto pelos dois forasteiros. A braveza da ave que dá nome ao lugar, tirado do mapa digital, representa a resistência do seu povo contra as investidas das forças armadas estrangeiras, interessadas na extinção da vida naquele espaço periférico do terceiro, quarto ou quinto mundos. Na geografia humana e econômica de tempos idos, o primeiro mundo era ocupado pelas nações capitalistas ricas. A geopolítica da globalização não dá visibilidade para os bacurais. Por estarem associados à pobreza, ao perigo ameaçador, alimentam mentalidades interessadas em extingui-los. “Quem nasce em Bacurau é o quê?” Pergunta feita pela “estrangeira” do Sul brasileiro. A resposta “é gente”, emitida por um garoto, desconcerta a quem se vê como o “civilizado”, superior ao outro “selvagem”. A prepotência dos brancos, ou seja, o de língua inglesa e o do Brasil sulista, com ares de superioridade, encontra a resistência armada da comunidade de Bacurau. Cercados e vigiados pelos invasores, respondem com tenacidade e planejamento à investida violenta dos bárbaros, suas metralhadoras e a munição de um “drone voyeur”. Invasão em rede, tecnologizada e com trilha eletrônica. Novas barbáries em pretensas pós-modernidades. É a sociedade do espetáculo e suas telas, dramáticas e banais, na exibição de caixões de defunto em série. A cara da morte dá ibope. Ela está viva. Bombou o vídeo do “Pacote” e os seus crimes.

TELA SOCIOLÓGICA REMOTA

TELA SOCIOLÓGICA REMOTA

       Os usos do cinema no ensino, na pesquisa e na extensão universitárias. Com Edgar Morin, “a sociologia do cinema” como objeto a ser pesquisado. Um objetivo projetado pela Tela Sociológica desde os seus primeiros passos, em 2001. Os tempos mudam. Da fita VHS ao serviço online de streaming, acompanhamos as rupturas promovidas pelos avanços tecnológicos. Na sociedade em rede, atentamos para os seus movimentos e em ritmos geracionais variados, vamos aprendendo a usar os seus mecanismos digitais. As nossas sessões de exibições fílmicas acompanham as mudanças tecnológicas globais e aderem aos novos formatos de exibição. Abertos, ampliamos as maneiras de trabalharmos com os textos fílmicos.

       Em paralelo com os encontros presenciais, iniciaremos as telas sociológicas remotas, em consonância com o ensino remoto, uma nova modalidade de exercício educacional. O (a) participante assiste antes ao filme selecionado e entra na sala virtual para debatê-lo. Acompanhem a nossa programação e aguardem o link da entrada. O fundamental é seguirmos em frente com as nossas reflexões temáticas a partir dos pensamentos projetados pelos cineastas. Promovemos diálogos entre os pensadores de vários campos cognitivos. Dentre estes, o pensamento exibido pelo olhar cinematográfico. Quentin Tarantino e as suas especulações cinematográficas. Na nossa metodologia dialogal, os filmes não têm um sentido apenas decorativo. São discursos pensantes, com suas legalidades próprias. Somos seguidores e influenciados pelo navegador livre que rompe com as “linhas demarcatórias” e os “marcos fronteiriços” entre os diversos saberes.

        No nosso prisma, ancorados em Theodor W. Adorno, “…fluidificam-se as fronteiras” e tendemos aos enlaçamentos cognitivos (ADORNO, 2018). Na trilha de uma “imaginação sociológica”, passamos “de uma perspectiva para outra”. Com mentalidades abrangentes, vamos além de órbitas limitadas e organizamos rodas de conversa nas quais as lentes dos (as) envolvidos (as) partilham as suas sensibilidades na tentativa de “compreender o que está se passando em si mesmos como minúsculos pontos de interseção de biografia e história dentro da sociedade” (MILLS, 2009, p.86).

         Não se deixando “enfeixar no compartimento ‘sociologia’ “, embora este seja o seu “porto-seguro”, o pensador objetiva “navegar livremente de maneira transdisciplinar”. Na sua navegação, o “cinéfago” encontrou “uma maneira profissional de realizar minha paixão de cinéfilo”. Digo o mesmo no casamento do “prazer” com o “trabalho” quando projetamos uma obra cinematográfica para além do “divertimento”. Nas suas memórias parisienses, Edgar Morin ia trabalhar no escurinho do cinema e “tomava notas em cada projeção, valendo-me de uma caneta-lanterna de bolso” (MORIN, 2015, p.104). Como a única luz que deve brilhar é a da tela, desliguem a lanterna dos seus celulares.

ADORNO, Theodor W. A arte e as artes: Primeira introdução à teoria estética. Rio de Janeiro (RJ): Bazar do Tempo, 2018.

MILLS, C. Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

MORIN, Edgar. Minha Paris, minha memória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

MINHA QUERIDA, SAUDAÇÕES

MINHA QUERIDA, SAUDAÇÕES

       “Vem, me faz um carinho, me toque mansinho / Me conta um segredo, me enche de beijo / Depois vai descansar, outra forma não há / Como eu te valorizo, eu te espero acordar”. Fragmento de um chamado amoroso contido em um marcador de livro, distribuído para o público do show “Cartas de Amor”, da cantora Tiê. Do delicado espetáculo, no qual algumas delas eram lidas pela artista e por gente da plateia, sou tocado para levá-las aos nossos encontros de “Música Popular Brasileira e Encontro de Gerações”. Nas minhas memórias fonográficas, lembro da canção “Mensagem” (Aldo Cabral, Cícero Nunes), gravada nas vozes de Neusa Maria, Isaurinha Garcia, Vanusa, Ná Ozzetti e Maria Bethânia.

       Em tempos pretéritos, escrevíamos cartas e estas eram seladas nas agências dos Correios e Telégrafos. A revolução internética, da sociedade em rede, impactou na maneira de nos comunicarmos pela via da escrita. Na era digital, o e-mail simboliza a entrada em um novo momento comunicacional. Os nossos cotidianos foram afetados em todas as dimensões das nossas existências. Os envelopes selados e os seus variados conteúdos fizeram parte das nossas histórias. Quem ainda vai postá-los na agência do Correio mais próxima? E os telegramas? Onde encontrar os colecionadores de selos? Cartas simples ou registradas, a depender do bolso do remetente. Memórias temporais da época em que os pombos correios transportavam cartões de Natal.

         No WhatsApp do nosso grupo, lancei as seguintes provocações: “Respeitando a intimidade e a privacidade de cada um (a), algum (a) de vocês teria uma carta guardada para ler no nosso encontro de amanhã? Carta de amor ou não, vamos conversar sobre as mensagens trocadas com alguém. Vi o show CARTAS DE AMOR, da cantora Tiê e nelas pensei”. “Alguém vai ler alguma carta guardada?” Uma das participantes compartilhou, pelo YouTube, “mais uma do fundo do baú”: em 1964, “A carta”, cantada por Waldick Soriano, “o elegante”, “eterno apaixonado”. E quem não sabia escrever? Esta pessoa ditava as suas mensagens para alguém escrevê-las ao seu destinatário. Uma cena cotidiana filmada por Walter Sales para o filme “Central do Brasil” (1998). No repertório musical da nossa “roda de conversa remota”, via Google Meet, foi exibida a leitura de Maria Bethânia para “Mensagem”. A poética intérprete convoca Álvaro de Campos para selar o “ridículo” ato de remeter uma carta amorosa. Ouçamos o recado do mensageiro:

Quando o carteiro chegou

E o meu nome gritou

Com uma carta na mão

Ante surpresa tão rude

Nem sei como pude chegar ao portão

Lendo o envelope bonito

O seu sobrescrito eu reconheci

A mesma caligrafia que me disse um dia

“Estou farto de ti”

Porém não tive coragem de abrir a mensagem

Porque, na incerteza, eu meditava

Dizia: “será de alegria ou será de tristeza?”

Quanta verdade tristonha

Ou mentira risonha uma cara nos traz

E assim pensando, rasguei sua carta e queimei

Para não sofrer mais.

Todas as cartas de amor são ridículas

Não seriam cartas de amor, se não fossem

Ridículas

Também escrevi, no meu tempo, cartas de amor

Como as outras, ridículas

As cartas de amor, se há amor, têm que ser

Ridículas

Quem me dera o tempo em que eu escrevia,

Sem dar por isso, cartas de amor ridículas

Afinal, só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor é que são ridículas.

QUEM FOI ADELINO MOREIRA?

MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E ENCONTRO DE GERAÇÕES

                     QUEM FOI ADELINO MOREIRA?

        Nelson Gonçalves (1919 – 1998), “o último dos trovadores”, “em matéria de voz, interpretação e carisma, ele situava-se no mesmo nível dos famosos” Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas e Carlos Galhardo, “os quatro grandes”, seus antecessores da “Época de Ouro” (SEVERIANO, 2017, p.302). Ídolos “maiores” e “populares” de uma era dourada, reis radiofônicos e fonográficos. Nelson Gonçalves, “a partir dos anos 1950 levou adiante o estilo dos colegas” do quarteto dourado (FAOUR, 2021).

        Na tela, no aparelho de som e no palco teatral, “Nelson Gonçalves, o amor e o tempo” é um texto de teatro no qual um Nelson homem/mulher subjetiva as suas sacudidas existenciais, as voltas por cima na vida nada linear de um trabalhador da música. Prazeres e ausências nas passagens temporais de uma existência melodiosa, apaixonada, intensa, de exageros. Na dramaturgia do seu percurso existencial, a fala de um Nelson no chão de estrelas, sob as luzes da ribalta: “Fiquei ausente de mim mesmo. Eu quero voltar a ser quem um dia eu fui. Eu quero voltar a ser quem eu sou. O Nelson Gonçalves, operário das canções de amor” (CHALITA, 2019, p.89).

        As canções e as suas potencialidades reflexivas. Ouvintes e pensantes a partir do repertório musical selecionado. Refletir sobre temas diversos pela via dos discursos musicais. Eis os nortes metodológicos dos nossos encontros em MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E ENCONTRO DE GERAÇÕES. Promovemos enlaçamentos artísticos. O “docudrama” “Nelson Gonçalves”, dirigido por Elizeu Ewald remete à audição dos fonogramas cantados pelo seu protagonista. A trajetória sonora de um personalíssimo cantor e a pessoa humana que dá corpo e sustentação ao seu talento artístico. Uma carreira de sucessos e as pedras no seu caminho. Os deuses e os seus crepúsculos.

       “Auto-retrato”, canção composta por Ivor Lancelotti e Paulo Cesar Pinheiro e gravada por Nelson Gonçalves, traduz o seu percurso histórico de estrela musical atravessado por momentos de crises, em especial os ligados ao consumo de drogas. A leitura do citado texto sonoro disparou alguns questionamentos e tópicos para reflexões: 1) Se você for contar a sua vida, dá para escrever um drama sobre ela? 2) Pensemos sobre a roleta russa das nossas existências, seus altos e baixos. 3) Reflitamos sobre os momentos em que sentimos estar perdidos na direção das nossas vidas. 4) Pensemos sobre os momentos em que sentimos estar sendo vampirizados. 5) Algum arrependimento pelo que você fez ou deixou de fazer? 6) Vamos nos permitir, pois não há tempo que volte. 7) Começarias tudo outra vez? Disparos reflexivos gerados do conteúdo musicado. Este é o ponto de partida da exposição dos pensamentos dos(as) participantes do nosso encontro semanal.

CHALITA, Gabriel. Nelson Gonçalves, o amor e o tempo. Barueri [SP]: Companhia Editora Nacional, 2019.

FAOUR, Rodrigo. História da Música Popular Brasileira, sem preconceitos: Dos primórdios, em 1500, aos explosivos anos 1970, vol. 1. Rio de Janeiro: Record, 2021.

SEVERIANO, Jairo. Uma história da Música Popular Brasileira: Das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2017.

NELSON GONÇALVES CANTA AS “MULHERES DA NOITE” DE KENJI MIZOGUCHI

NELSON GONÇALVES CANTA AS “MULHERES DA NOITE” DE KENJI MIZOGUCHI

TELA SOCIOLÓGICA PTIANA: NELSON GONÇALVES

SESSÃO 1: DIA 10/04/2024 – 16 HORAS

SESSÃO 2: DIA 11/04/2024 – 9 HORAS

LOCAL: SALA 340B – SOCORRO LIRA (CCHL/UFPI)

      Viajando por “todos os cantos”, em anos de músicas brasileiras, trilho “a canção no tempo” e ouço a voz de um dos cantores da “época de ouro”: Antonio Gonçalves Sobral (21/06/1919 – 18/04/1998). Com uma grande quantidade de canções representativas, Nelson Gonçalves é “o cantor que tem o maior número de gravações na discografia brasileira”. Entre elas, o samba-canção “A Volta do Boêmio”, de Adelino Moreira, “o principal abastecedor do repertório de Nelson Gonçalves”. A boemia exaltada em “um clássico da música sentimental/popularesca”. As vozes douradas de Orlando Silva e Francisco Alves, “cantores carismáticos”, “têm um legítimo sucessor na figura de Nelson Gonçalves, ídolo de várias gerações” (SEVERIANO & MELLO, 2015, p.284).

        Com “seu timbre de barítono, com impressionante limpidez nas notas mais graves”, Nelson Gonçalves, “nos anos seguintes a 1953”, “desfrutou a glória da coroa como Rei do Rádio e artista do primeiro time na Rádio Nacional”, dotado de “uma projeção vocal de qualidade indiscutível” e usando “uma grande habilidade técnica”. Uma voz viril, sedutora, estilosa, de “dicção caprichada”, convicta e segura (MELLO, 2018). “Esplêndido”, na alusão de Hermínio Bello de Carvalho, “entre os heróis da música brasileira” (CARVALHO, 2015). “Os reis da voz” com “o eterno boêmio”, o “cantor excepcional” de “uma vida conturbada por amores, álcool e drogas”. Uma existência trilhada em uma discografia cantada por quem afirmou ter “o que contar” a seus “amigos e netos” (AGUIAR, 2013).

        De 1941 aos dias atuais, Nelson Gonçalves é “maXXImum” com os seus fonogramas nas coletâneas e suas seleções históricas de grandes sucessos. Faixas garimpadas do “arquétipo nacional de um (macho) brasileiro”. O cantor que é, no perfil biográfico feito por Stella Miranda, a “mais perfeita tradução” da MPB. O tradutor “que, quando canta, rasga a garganta e se transforma em rouxinol: Nelson Gonçalves, o Super-Homem Brasileiro”. O “mito” musical cantador das Marias Betânias, das Marinas, das Rosas, das normalistas e das Dolores Sierras de todos os cais portuários. As esculturais damas notívagas, deusas dos asfaltos, nas vitrines das ruas. “Mulheres da noite” nas lentes cinematográficas de Kenji Mizoguchi e no canto do boêmio seresteiro das Lapas e estações das luzes.

       No ecrã cinematográfico, a voz de Paulo Betti narra: “Nelson cantou todos os gêneros musicais. Vendeu 60 milhões de discos. Foi viciado em drogas e recuperou-se. Foi o Rei do Rádio, o rei da boemia. Foi casado 3 vezes, teve 7 filhos e 8 netos. Parou de cantar aos 78 anos e morreu poucos meses depois. Nelson Gonçalves foi excessivo na sua arte, em tudo o que fez. Alternou golpes de violência e de ternura, como se encarnasse o drama das suas canções. Ele não interpretou absolutamente nada. Ele foi mesmo aquilo tudo que cantou”.

       Documentário e drama, “o folhetim da vida real” em cenas trágicas, divertidas e apaixonadas do “pugilista-cantor” e o seu buarquiano “suburbano coração”. Sentimental e romântico em um mercado fonográfico capitalista, concorrencial, focado nas vendas quantitativas e em um cenário de fogueiras das vaidades. Paraísos e infernos astrais nas imagens do estrelato e do crepúsculo de um “Nelson boêmio, o Nelson mulherengo e o Nelson que viveu perigosamente o lema ‘sexo, drogas e samba-canção’”, conforme a escrita de Mauro Ferreira, contida na capa do DVD. Nelson reconheceu a queda, não desanimou, levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima.

       Do seu vasto repertório, uma canção, em especial, traduz a sua trajetória existencial, de altos e baixos. Uma história de vida demasiadamente humana. Ouço o seu “Auto-Retrato”, por ele cantado, em 1989, na composição de Ivor Lancelotti e Paulo Cesar Pinheiro. Uma letra tradutora de uma carreira musical de sucessos e quedas. “Discos de Ouro, a glória, o dinheiro e… o vício”. O gago “metralha”, com o seu “gogó de ouro”, “conquistou elogios de Frank Sinatra” e “emocionou por mais de cinquenta anos e impressiona até a nova geração, como o roqueiro Lobão, seu fã declarado” (RIBEIRO & DUARTE, 2006, p.82). O “docudrama” Nelson Gonçalves, dirigido por Elizeu Ewald, encontra as suas imagens e cores nas palavras escritas e musicadas pelos mencionados compositores:

Se eu for contar a minha vida
Qualquer poeta escreve um drama
Já desejei estrelas e alcancei
Mas já pisei na lama
Fiz serenata à luz da Lua
Cantei paixões desiludidas
Gostei de andar à toa por aí
No meio das perdidas

Já fui senhor e dono dos cabarés
Fui recebido como um rei nos bordéis
Vivendo assim deixei meu sangue
Nos velhos botequins do mangue
Já tive o brilho da riqueza a meus pés
Mas já dormi nos pardieiros e hotéis
Na boemia da cidade
Gastei a minha mocidade
Minha louca fantasia
Foi assim me envelhecendo
Fiz de tudo que podia
E de tudo que eu fazia
Não me arrependo
Quando lembro que alegria
Quando conto me comovo
Sei que nada volta um dia
Mas eu juro que faria
Tudo de novo

AGUIAR, Ronaldo Conde. Os reis da voz. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

CARVALHO, Hermínio Bello de. Taberna da Glória e outras glórias: mil vidas entre os heróis da música brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.

MELLO, Zuza Homem de. Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958). São Paulo: Editora 34/Edições Sesc São Paulo, 2018.

RIBEIRO, Pery & DUARTE, Ana. Minhas duas estrelas: uma vida com meus pais Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. São Paulo: Globo, 2006.

SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol.1: 1901-1957). São Paulo: Editora 34, 2015.

AS EMOÇÕES DE MAURO E AKIRA

 AS EMOÇÕES DE MAURO E AKIRA

       Choramos, sorrimos. Somos seres emotivos. Eis uma característica da nossa humanidade. Emoções lidas sob as mais diferentes óticas. Nada do que é humano é estranho às imaginações dos pensadores sensíveis e antenados. Nossos medos, desejos, silêncios e sons provocam o desassossego dos sociólogos e cineastas. Particularizo os olhares que lançam sobre a tragicomédia humana e os seus ais gozosos e dolorosos. A existência humana e a sua complexidade, sob as mais variadas lentes reflexivas. Na trilha de um pensamento complexo, promovemos mais um encontro reflexivo entre os saberes sociológico e cinematográfico. A “Sociologia das Emoções”, na compreensão de Mauro Koury, dialoga com a “Anatomia do Medo”, dissecado pelo olho artístico de Akira Kurosawa.

        Ciência e arte atentas aos sinais dos tempos, discursam sobre as nossas vidas cotidianas. Cada discurso com a sua legalidade própria. Linguagens diversas nas nossas buscas sobre os sentidos das nossas ações. Cientistas e artistas em estudos ancestrais sobre clássicas questões: quem somos? De onde viemos? Para onde estamos rumando? Abertos para os diversos prismas reflexivos, munidos de conceitos, imagens e senso crítico, conjugamos os verbos desvendar, descortinar e desvelar. Conjugações verbais compartilhadas por estudiosos dos mais variados campos do saber. A crítica está presente nas obras de Mauro Koury e Akira Kurosawa. Com arsenais conceituais e instrumentais diferentes, olham para as gargalhadas e lágrimas dos Pedros e das Marias dos shows nossos de cada dia. Em textos escritos e telanizados, as visões das nossas ambiguidades, dos fascínios e horrores que produzimos. Sem maniqueísmos e reducionismos, somos potentes para erguer e destruir coisas belas. O mesmo bicho que pari uma sinfonia, lança bombas em zonas habitadas por crianças inocentes. Anjos embriagados em suas matanças e declarações amorosas.

MOLDES DE JESUS PARA TODOS OS BOLSOS

MOLDES DE JESUS PARA TODOS OS BOLSOS

           Em um campo religioso de conflitos, são construídas muitas imagens de Jesus Cristo. Este é moldado em várias direções. São muitos os perfis compartilhados em torno do personagem nuclear da história do Cristianismo. Reflexo de uma sociedade classista, observamos um desfile de Cristos: os coniventes com as estruturas opressivas, excludentes, ideólogos das relações de exploração, geradoras dos camarotes vips e apartheids sociais. Os fascistas compartilham a imagem do seu Cristo acrítico, colonial, conformado e afinado com os interesses dos dominadores. A religião na sua clássica faceta opiácea. Por outro lado, com menor visibilidade, o Cristo sintonizado com a luta dos oprimidos, o desafinado com o coro dos “cristãos” pactuados com os exploradores. Afinado com o povo das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), os periféricos, excluídos, invisíveis e criminalizados. O Cristo da Teologia da Libertação, o que coloca os pés no chão das nossas favelas. Aquele que corre o risco de ser morto no enfrentamento de quem pergunta: você sabe com quem está falando?

          Falo daquele Jesus que foi morto, no seu tempo histórico, por desafinar do projeto político, social e religioso dos donos do poder daquele contexto dos Herodes, Pilatos, sumos sacerdotes e anciãos. Estes, representavam interesses partidários e classistas. Uma opção preferencial e solidária pelos pobres, incomodava às classes dominantes. Aliados, um “Centrão” de políticos e uma bancada de religiosos daquela época, colocavam pedras no caminho dos cristãos libertadores. Os Júlios Lancellottis daquele momento, eram ameaçados, perseguidos, cancelados e mortos. Um Cristo “pedra no sapato”, que fedia e cheirava, não açucarado no seu relacionamento com os poderosos de plantão. Aquele que ficou furioso com os vendilhões do templo sagrado, gênese das “pequenas igrejas, grandes negócios” dos nossos dias. O carismático pregador de um discurso indignado e profético, de anúncio e denúncia. Assassinado, por múltiplas razões, em especial as políticas e religiosas, protagonizou uma dolorosa “via-sacra”. Nas estações do seu Calvário, em número de quinze, na ritualística católica, a abertura de espaços para um cristão pensante, com ideais transformadores, voltados para mudanças estruturais, revolucionárias. Como separar fé e política?

         Nas referências de uma “Teología de la Liberación”, cito Gustavo Gutiérrez, propagador do “Deus da vida” e do seu objetivo teologal de “hablar de Dios desde el sufrimiento del inocente”. “La fuerza histórica” de um Cristo “del lado de los pobres”. Nesta trilha, com seu “Batismo de Sangue” e em “uma vida entre a igreja e a política”, o “Jesus militante” de Frei Betto, munido do “Evangelho” e do “projeto político do Reino de Deus”. Na “esperança de um povo que luta”, com a sua “leitura popular da Bíblia”, o Frei Carlos Mesters segue “com Jesus na contramão”. Inquieto e persistente na “paixão de Cristo, paixão do mundo”, Leonardo Boff protagoniza uma “eclesiologia militante”, ancorada em “Jesus Cristo libertador”. O investimento teológico na “força dos pequeninos” apresenta o Cristo da “Teologia do Cativeiro e da Libertação”. Os referidos teólogos, mesmo sabendo das profundas diferenças entre Jesus Cristo e Karl Marx, veem possibilidades de diálogo entre as perspectivas por eles propostas. Na ponte dialogal, a crítica ao capitalismo selvagem, desumanizante, e as propostas de superá-lo. Estamos em um plano de muitas tensões.

        No seguimento do martírio de Cristo, uma indagação: quem são os crucificados da nossa sociedade? Carregando cruzes de pesos diferenciados, tentamos suportar as nossas e atentar para as pesadas cargas carregadas pelos desempregados, doentes e famintos em suas precariedades existenciais. Humanos são alvos de descartes e tratados como refugos. Os refugiados sabem disto. As quedas de Jesus são experimentadas pelos “pequeninos”, os “tantos caídos” pelas ruas das nossas cidades. A ostentação violenta, inconsequente e exibicionista dos milionários, celebridades e influenciadores despudorados, nas suas novas mansões, provocando e humilhando os miseráveis. “Sou visto, logo existo”.

         Paisagens da “Belíndia” brasileira e as suas cariocas zonas norte e sul, sob as bençãos redentoras de um Cristo na vista de um espetáculo de fascínios e terrores. Os brasis seguem o cartão postal da “cidade maravilhosa” com os seus luxuosos condomínios murados, eletrificados, vigiados e seguros contra os perigosos periféricos, pobres e pretos. Da areia da praia, a ralé contempla a destrutiva, escandalosa e incontrolável especulação imobiliária. Apartamentos de preços nada populares. Quantos deles tem aquele jogador famoso? A criminalização da pobreza demanda por muros altos, cercas elétricas e câmeras de vigilância. O medo gera lucro e os jornais policiais são campeões de audiência. A chapeuzinho, vermelha ou amarela, segue assustada com a espreita dos lobos. Cuidado com os sob pele de cordeiro.

        As Marias sofrem ao verem os seus rebentos hospitalizados, presos e drogados. Sofrimentos marianos nos rostos brasileiros desfigurados: moradores de rua, os violentados e desassistidos em todas as fases da vida. Na desassistência, encaram agressividade, indiferença e fechamento. Na exclusão, as pessoas são despojadas das suas dignidades. Sem emprego, saúde e moradia, encarnam a paixão cristã e chagados, conhecem a discriminação, o abandono, a intolerância. Na perspectiva de uma “amizade social”, o estímulo para que enxuguemos as lágrimas uns dos outros, em uma sensibilização de ajuda. Toques dados pela Campanha da Fraternidade 2024, uma iniciativa da CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. E os descasos dos poderes públicos? Nos seus descuidos irresponsáveis, chegam a atuar como crucificadores.

         Não atentando para os desdobramentos do que estamos fazendo ou omitindo, parimos situações mortíferas. Banalizamos o mal. Este é espetacularizado, viraliza, dá altos índices de audiência. O mercado dita as regras, joga e lucra com a pequenez, a frivolidade e o lado ordinário dos indivíduos, escancarados em hiperexposição e vigilância midiáticas. “Fofocalizados”, são vistos, logo passam a existir. As barbáries fazem parte do nosso show. Por onde anda a delicadeza? Pendulando entre progressos e regressões, para onde estamos indo? É neste contexto de clarões e breus que observamos a elasticidade do nome de Jesus, moldável para justificar os seus mais variados usos e abusos, de A a Z. À semelhança da palavra Deus, usada para amar e matar.

          No artigo enviado por “A Terra é Redonda”, em 27 de março de 2024, Marilia Pacheco Fiorillo interroga no título do seu texto: “Um Jesus? Ou uma multidão de disfarces?” No final, exclama e lança mais uma pergunta, congruente com um breu conjuntural de retrocessos: “Ai, Jesus! Quem te fez miliciano?”. Na mesma data antes mencionada, a “Teologia da Libertação Brasil” compartilhou, no facebook, a seguinte mensagem do Padre José Comblin: “Jesus morreu porque anunciou o Reino de Deus, o que ameaçava tanto o reino de César como o reino das autoridades religiosas de Israel. Era um ato político, como queria o Pai”. O mártir cristão tem mil e uma utilidades.

FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR é Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí.

IRINA PALM E O SEU “COTOVELO DE PENISTA”

IRINA PALM E O SEU “COTOVELO DE PENISTA”

TELA SOCIOLÓGICA: IRINA PALM (SESSÃO DEDICADA ÀS MULHERES DE TODOS OS DIAS).

DIA: 08/03/2024 – 16 HORAS – SALA 340B – PROFESSORA SOCORRO LIRA – CCHL/UFPI.

        As dores e as delícias de ser mulher fazem parte da história da Tela Sociológica. Vários nomes de mulheres constam nos registros do nosso repertório fílmico. Madame Bovary, Anna Karênina, Shirley Valentine, Cabíria, Cléo, Sofia, Elsa, Petra von Kant, as damas das camélias e as belas das tardes. Das fontes literárias e das experiências cotidianas, elas fornecem os conteúdos dramatúrgicos. Selecionamos Maggie, protagonista de IRINA PALM (2006), filme dirigido por Sam Garbarski. Ela é avó de Ollie e este está gravemente doente. O que fazer para conseguir dinheiro e tentar salvá-lo? Comprometida, ela vai à luta para ver se consegue arrumar um emprego. As dificuldades para encontrá-lo, aliadas à falta de dinheiro, fazem com que Maggie aceite um emprego moralmente censurável. Nas suas procuras por trabalho, ouvia falas de um etarismo excludente: “Para ser honesto, na sua idade é quase impossível arrumar emprego”.

        Diante das pedras colocadas no seu caminho, Maggie decide encarar um “negócio” condenável pelos padrões morais do contexto social em que vivia. Encarna a ideia segundo a qual “a disposição para se sacrificar é uma dimensão necessária da prática do amor” (HOOKS, 2021, p.174). Disposta a sacrifícios para salvar o seu neto, ela vai trabalhar no Club Sexy World, espaço de “live nude show”. Como atendente, fará um atendimento escondido, mantido em segredo dos seus familiares e das pessoas do seu convívio cotidiano. No enfrentamento das coerções sociais, Maggie poderia receber várias adjetivações: ousada, intrépida, determinada, atrevida. Os censores, em seus julgamentos moralizadores, condenariam o sacrifício da avó, desconsiderando as motivações profundas da “cinquentona desmazelada”, disposta a fazer qualquer coisa para conseguir o financiamento terapêutico do seu neto. Na tela, o impacto positivo e potente do movimento de “imagens de interação humana amorosa” (HOOKS, 2021).

       Quando o filho descobre a fonte de onde a sua mãe conseguiu a grana para custear a tentativa de curar o garoto, ele chega a tratá-la como uma “puta” ou “profissional do sexo”. No seu puritanismo, usa de aspereza para com a sua genitora: “Não existe sabão suficiente no mundo para limpar o que andou fazendo!” Dinheiro “sujo”, impuro, ganho em ações imorais? Em cena, iniciativas maternas motivadas por razão, afeto, sentimento e valores. Em representação fílmica, o conceito weberiano de ação social na sua sociologia compreensiva. Como desconsiderar as motivações viscerais e os sentidos dos atos de Maggie? Uma cuidadosa mulher na prática de uma ética amorosa. Quem pode atirar pedras nela? Uma trabalhadora que, nos seus esforços repetitivos, desenvolveu um “cotovelo de penista” como desdobramento dos movimentos manuais que fazia na sua clientela. Suas mãos ganharam boas cotações. Foram alvo de disputas comerciais e invejas. Em casa, na sagrada família, Maggie. No “inferninho” do trabalho, o “nome artístico” Irina Palm, evocativo de “uma moça bem sensual”. Na labuta diária, uma operária de uma profissão censurável pela hipocrisia dos outros, bisbilhoteiros e fofoqueiros.

       Com “arte na linha de frente”, as Irinas seguem “uma forma peculiar de consciência social”, especial na “sua capacidade de influenciar tanto sentimentos como conhecimento”. Mulheres talentosas, artistas pensadoras e realizadoras da “tarefa de despertar e sensibilizar as pessoas” “…em direção à emancipação econômica, racial e sexual” (DAVIS, 2017, p.180). Assim como a poesia, o cinema “faz alguma coisa acontecer”. Os poetas e os cineastas são professorais, ensinam, cavam “boas trincheiras”, sobrevivem e firmam compromissos com os acontecimentos históricos. Nos seus discursos, ajudam no florescimento das pessoas em um mundo moldado por palavras e imagens humanas. Nas salas de exibições fílmicas, “há uma quantidade significativa de pessoas-poder para a mudança social, e isso deve se tornar uma potência consciente e útil” (LORDE, 2020, P.53).

DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017.

HOOKS, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.

LORDE, Audre. Sou sua irmã: escritos reunidos. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

FADANDO COM RAQUEL, ROBERTO E ERASMO

MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E ENCONTRO DE GERAÇÕES

              FADANDO COM RAQUEL, ROBERTO E ERASMO

        De Waldick Soriano a Nando Reis, passando por Angela Maria e Maria Bethânia, eles (as) produzem tributos à dupla Roberto e Erasmo Carlos. Dentre estes, destaco “Roberto Carlos por Raquel Tavares – Do fundo do meu coração” (2017). A cantora apresenta 13 canções da consagrada parceria entre os dois cantores/compositores. Com vozes gravadas no Vale de Lobos (Lisboa/Portugal), Roberto e Erasmo são relidos em tons fadistas e com os toques da guitarra portuguesa de Bernardo Couto. De Amália Rodrigues a Gisela João, fados são amorosos, dão “de beber à dor” e subjetivam os mais diversos ais: súplicas, saudades, amarguras, lágrimas e ciúmes dos “amores marinheiros”. Fado é amor temperado com limão amargo, em um enamoramento tocado por guitarra triste. Nas suas várias tendências, os (as) cantores (as) desfadam, dançam e também cantam fados alegres, animados e descontraídos.

        A Sony Music Portugal realizou, com o sotaque lusitano de Raquel Tavares, um trabalho sintonizado com a verve romântica do compositor de “Como é grande o meu amor por você”. A amorosidade sonora de Roberto e Erasmo é marca registrada de uma dimensão nuclear nas suas produções musicais. “Do Fundo do Meu Coração” é essencialmente romântico, concebido nas trilhas de um “Rei” musical que toca nas emoções dos seus ouvintes. O disco conta com as participações especiais de Caetano Veloso e Ana Carolina. Ele, na faixa 6, em “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” (Erasmo Carlos e Roberto Carlos). Ela, na faixa 4, “De tanto amor” (Erasmo Carlos e Roberto Carlos). Dos anos 1960, aos dias de hoje, com uma “voz tamanha”, fulgura uma carismática e encantadora majestade que pôs os seus pés no riacho e acha que nunca os tirou. A vida dos amantes, a ecologia e a religião são temas de destaque no vasto cancioneiro de Roberto.

        O apego a Roberto Carlos revela o artista carismático e o impacto da sua obra funcionando como “um espelho que reflete não apenas o que sentimos, mas o que somos ou fomos”. Criações musicais de amplo alcance e espraiamento “em todas as direções e todas as percepções que a sociedade brasileira tem de si mesma”. Em uma ancoragem afetiva, de emoções e sentimentos, Roberto é “uma espécie de porto seguro sentimental” (MEDEIROS, 2021, p.436). Protagonistas da “Jovem Guarda”, “o movimento roqueiro dos anos 1960”, “Roberto Carlos e Erasmo Carlos viraram a dupla de autores de maior sucesso da segunda metade do século XX, e Roberto nosso maior ídolo popular depois de Francisco Alves” (FAOUR, 2021).

         “Imensa popularidade” e o “respeito dos consumidores mais exigentes de música popular” foram granjeados pela dupla Roberto-Erasmo, “responsável por algumas criações que se tornaram clássicos do nosso cancioneiro, atualizando motivos atemporais da música popular”. Da “alienação” da Jovem Guarda, ao reconhecimento do seu potencial para a feitura de “obra-prima”, exemplificada por “uma canção magistral que conjuga uma melodia delicada, quase etérea, com uma letra em que palavras e expressões agressivas são utilizadas para expressar amor” (NAVES, 2010, p.126). Nas suas agilidades e precisões linguísticas, os poetas colhem delicadeza da estupidez humana.

        Com composições “desbragadamente amorosas”, o amante abre espaço para “o místico” e “o ecológico”. Em visibilidade e inclusão sonoras, as mulheres gordas e pequenas foram fontes inspiradoras para quem dedicou versos “a certos tipos femininos, digamos, não muito favorecidos pela natureza” (SEVERIANO, 2017, p.404). No balanço das bossas, “cantores de massa” abrem para os influentes toques da linha criativa tonalizada e tocada por João Gilberto. Augusto de Campos expressa uma “boa palavra sobre a música popular” e desconcerta com os seus apontamentos sobre as linhas evolutivas e criativas do nosso panorama musical. Iê, iê, iê e as aproximações dos “dois Carlos” com João Gilberto. Roberto Carlos, em especial, veio “…incorporando ao seu estilo interpretativo e ao seu repertório de sucessos, sem nenhuma inibição, algumas das lições e dos achados da bossa-nova” (CAMPOS, 2015, p.64).

CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 2015.

FAOUR, Rodrigo. História da Música Popular Brasileira, sem preconceitos: dos primórdios, em 1500, aos explosivos anos 1970, vol. 1. Rio de Janeiro: Record, 2021.

MEDEIROS, Jotabê. Roberto Carlos: Por isso essa voz tamanha. São Paulo: Todavia, 2021.

NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

“EU ENTENDO A JUVENTUDE TRANSVIADA”

EU ENTENDO A JUVENTUDE TRANSVIADA”

        Artistas fazem parte dos nossos shows cotidianos. Dos palcos para a audição nos nossos aparelhos sonoros, o pessoal da música marca presença no nosso “horizonte”, entendido como “o círculo de seres e acontecimentos que integram o mundo de cada um” (ORTEGA Y GASSET, 2021, p.105). Nomes artísticos vitalizadores e promotores de exaltação e vibração através dos pulsantes toques das suas obras. Dou um play e escuto a “negra melodia” do “poeta do Estácio”. Do morro de São Carlos, sigo uma linhagem da Música Popular Brasileira representada por “uma voz carioca, um maneirismo carioca, um poeta carioca” (VAZ, 2020). Sorvo a sonoridade elegante de Luiz Melodia.

       Gravado ao vivo em 15 de agosto de 2018, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Gravação dos seguintes fonogramas: Ébano, Congênito, Estácio Holly Estácio, Salve Linda Canção Sem Esperança, Fadas, Juventude Transviada, Pérola Negra, Dores de Amores, Magrelinha, Negro Gato. 10 canções do repertório cantado no 29º Prêmio da Música Brasileira, ano Luiz Melodia (1951 – 2017). De A a Z, 21 intérpretes fazem as suas releituras do cancioneiro melodiano. Encontro intergeracional das mais variadas vertentes musicais brasileiras para celebrar uma pérola negra dentre “as múltiplas tribos dos anos 1970”. Aquele que “desafiou estéticas preestabelecidas, transitando pelo samba, blues e pop” (FAOUR, 2021).

         De Alcione a Zezé Motta, eles (as) tributam Luiz Carlos dos Santos, o melodioso cantor/compositor, destaque na “corrente soul brasileira” (SEVERIANO, 2017). No seu “Samba-rock”, com um “estilo marginal”, “maldito”, corporificou a “fluidez musical da qual a melodia é a expressão” (VAZ, 2020, p.254). O cantor do “Negro Gato” (Getúlio Cortês), um “pretobras” e seus biscoitos finos sonoros são estrelas de premiação pelos barulhinhos bons que concebeu. Melodia em 2018, 2024 e para todos os anos vindouros estará no “coração do Brasil” com a sua “Magrelinha” e outros quilates musicais. Entre as pretinhosidades, Zezé Motta foi “a cantora que mais interpretou” as composições de Luiz Melodia. Para ela, ele presenteou a canção “Dores de Amores”. Tal como a madeira ébano, Luiz Melodia transmite nobreza e corporifica a qualidade da sua criação arteira.

FAOUR, Rodrigo. História da música popular brasileira, sem preconceitos: dos primórdios, em 1500, aos explosivos anos 1970, vol.1. Rio de Janeiro: Record, 2021.

ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte & outros escritos. Campinas, SP: Vide Editorial, 2021.

SEVERIANO, Jairo. Uma história da Música Popular Brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2017.

VAZ, Toninho. Meu nome é Ébano: a vida e a obra de Luiz Melodia. São Paulo: Tordesilhas, 2020.

MÁRIO DE ANDRADE NO ZÉ PEREIRA DA CIDADE DO SAMBA

MÁRIO DE ANDRADE NO ZÉ PEREIRA DA CIDADE DO SAMBA

        E seguem os toques musicais da aquarela carnavalesca do Brasil: “We are Bahia!” para inglês ouvir e ver para crer. Universal music. “60 anos de trio elétrico – 25 anos de Axé music”. Um CD comemorativo, lançado em 2010, trazendo 20 faixas. Encontro de gerações das várias tendências do carnaval baiano. O fonograma inicial reúne Armandinho, Trio elétrico Dodô & Osmar, Caetano Veloso e Moraes Moreira, em “Chame Gente” (Armandinho/Moraes Moreira), lançado em 1985. Velhos e novos baianos, em diversas batidas, colorem o trabalho fonográfico celebrativo. Vivo, na vigésima faixa, Caetano Veloso encerra a celebração sonora com “Atrás do trio elétrico” (1969), dos seus muitos carnavais. Os outros fonogramas trilham os tempos festivos: de 1972, com o “Pombo Correio” (Dodô/Osmar/Moraes) de Moraes Moreira, ao “Fricote, ao vivo” (2005), de Luiz Caldas, em parceria com Paulinho Camafeu. São décadas de agito, som para tirar o pé do chão. Música para pular brasileira. Levantar poeira da terra ancestral de todos os cantos e santos. “Sagrado e profano, o baiano é carnaval”. O “swing da cor” e os seus “gritos de guerra”. Não esqueçamos dos afoxés, dos filhos de Gandhi, do Ilê Aiyê e do Olodum. Liberação geral no “bota pra ferver”. Nas altas temperaturas da “ferveção”, “água mineral” da Timbalada. Puxando a eletricidade do som motorizado, os (as) agitadores (as): Daniela Mercury, Netinho, Chiclete com Banana, Banda Cheiro de Amor, Banda Reflexu’s, É o Tchan, Terra Samba, Asa de Águia, Banda Beijo, Banda Cheiro de Amor, Babado Novo, Margareth Menezes, Banda Eva e Ivete Sangalo.

         Com Capiba, “o poeta do frevo” e a compilação dos “grandes sambas da história”, monto a minha discoteca carnavalesca. E seguem as coletâneas pirateadas, vendidas nas ruas dos centros comerciais: “100% carnaval”, “Carnaval era assim”. No saudosismo sonoro, eram vendidas como “raridades da música”. Voltando para Recife, “carnaval começa também com C de Claudionor” (TELES, 2012). É “frevo e ciranda” na voz de Claudionor Germano. No “Recife antigo” dos “velhos tempos de criança”, Edgard Moraes evoca as “mágoas de Pierrot”. “Recordando a mocidade” e os “valores do passado”, Edgard, na sua poesia de brincante, afirma: “recordar é viver” e “a vida é um carnaval”. Mensagens para os foliões dos alegres bandos, embalados pelas amorosas canções dos românticos, líricos e divinais carnavais. Recifenses em seus “passos de anjo”, freviam no “tempo folião”. No contágio do “micróbio do frevo”, “é de perder o sapato…”.

         A viagem musical é vasta para quem está sassaricando. Nas trilhas mágicas dos antigos carnavais, “o Rio inventou a marchinha” e vamos sambando nas ruas e nos salões com a “marcha do Cordão do Bola Preta” (Vicente Paiva/Nelson Barbosa), cantada por Carmen Costa, em 1961. Vastidão de ritmos e batidas consagradas pela “Banda do Canecão”. Em 1974, celebrando “100 anos de carnaval”, gravou “141 músicas” para o deleite dos foliões sassariqueiros. Para não dizerem que esqueci do carnaval cearense, recomendo a ida para os desfiles na avenida Domingos Olímpio, região central de Fortaleza. Ouçamos as loas de maracatu, “cantigas de liberdade”, na voz de Calé Alencar e os “maracatus, afoxés, coroações, rezas e outros batuques”, nos CD’s gravados por Inês Mapurunga. Vozes da África no terral alencarino do Dragão do Mar. Convites afinados com a exaltação e o valor dado por Mário de Andrade aos tambores, bumbos, rainhas negras, reis negros, leões coroados, gingas, mestres e orixás da “festa na senzala” na passarela momina da “mãe África”: “Os cortejos semi-religiosos semi-carnavalescos dos maracatus nordestinos não são mais que uma suíte”. E mais: “sambas” e “marchas de carnaval” estão aí para serem estudadas e “pra inspirar formas artísticas nacionais” (ANDRADE, 2006, p.53).

        “Carnaval tá aí”. Eu e meus aparelhos sonoros, radiolas, CD’s, DVD’s, spotify, em sintonia com “a música popular brasileira na vitrola de Mário de Andrade”. O cronista, em 1931, revelou interesse pela fecundidade musical da festa carnavalesca. O carnaval e seus rebentos musicais: “a nossa música que sempre teve nele uma das fontes fecundas de evolução”. Na sua sapiência de ensaísta sobre sonoridades, realça um aspecto político do ópio carnavalesco: “é sabido” que “o preparo e enfim gozo do carnaval é uma das causas do nosso conformismo”. Para além dos seus desdobramentos conformistas, “o carnaval é uma espécie de cio ornitológico do Brasil, o país bota a boca no mundo numa cantoria sem parada. Vão aparecendo as danças novas, as marchinhas safadas, os batuques maracatuzados” (ANDRADE, 2022, p.81).

        O juiz deixa o terno encostado e vai participar do bloco das “virgens”, fantasiado com o vestido da esposa. Na efemeridade do tempo de relacionamentos simpáticos, carnavalizados, a palavra “anormalidade” dá uma folga. No engendramento de um campo social aberto, é criado um “mundo de mediação, encontro e compensação moral”. Dias temporários de “conjunção, licença e joking”, nos quais “há lugar para todos os seres, tipos, personagens, categorias e grupos; para todos os valores” (DaMATTA, 1997, p.65). Período passageiro de suspensão, metafórico, de “união” e “encontro” do que é separado em dias “normais”. O “desviante”, o “anormal”, o “infame” e o outsider avistam um extraordinário sinal verde, liberador e licenciador para um “entendimento vindo da trégua que suspende as regras sociais do mundo da plausibilidade: o universo do cotidiano” (DaMATTA, 1997, p.66). Uma trilha sonora carnavalesca sintoniza com as fantasias, os costumes e as figuras personalizadas que soltam as “frangas” e botam para fora o que represam na rotina diária das suas travadas e vigiadas existências.

        “O que faz o brasil, Brasil?” Quais “os caminhos que tornam a sociedade brasileira diferente e única”? Questões discutidas por um dos intérpretes voltados “para uma sociologia do dilema brasileiro” (DaMATTA, 2017). Na companhia da malandragem e do heroísmo, marcantes entre as “características nacionais brasileiras”, os “carnavais”, ao lado das “paradas e procissões”, ocupam os nossos tempos e espaços. Rotinas e ritos profanos  e sagrados fazem parte dos nossos shows. Mistura nacional de rezas e festas. No desfile do maracatu fortalezense, no Ceará, as loas louvam os Orixás. Fantasiados, nos dias carnavalescos, alimentamos a poesia socioantropológica segundo a qual o carnaval é uma invenção diabólica que ganhou as bençãos divinas.

        Nas casas e ruas, a carnavalização acontece “em múltiplos planos”. Blocos de sujos, corsos e Zés Pereiras carnavalizam, invertem, criticam e protestam. São também festejos professorais, politizados, emissores de gritos indignados. As escolas de samba e os maracatus são exemplares. Dão aulas de cultura. No afrouxamento das regras, no “vale-tudo”, autoridades e populares caem na gandaia dos espaços especiais e múltiplos das avenidas iluminadas. Na invenção carnavalesca, ritos sem donos e grupos carnavalescos desfilando as suas dramatizações. Carnavais “de igualdade e de hierarquia” na sociedade do espetáculo e camarotizada. Atrás do trio elétrico, os pagantes, uniformizados de caros abadás, seguem apartados do pessoal da pipoca. Camarotização social, seus vips e ralés brincantes nos corredores das folias. Rainha por um dia, a favelada é destaque na corte do maracatu Vozes da África. Na quarta-feira de cinzas, é dia penitencial da tirada das máscaras e fantasias. Tem conta para pagar. O expediente comercial começa a partir das 12 horas. O homo ludens, afirma: seriedade não é sinônimo de sisudez. Tirando e botando os pés no chão, na alternância entre ais de gozo e dor, a vida segue com as suas delícias e dores.

ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006.

ANDRADE, Mário de. A estranha força da canção. São Paulo: Hedra, Acorde!, 2022.

BRUNO, Leonardo. Canto de Rainhas: o poder das mulheres que escreveram a história do samba. Rio de Janeiro: Agir, 2021.

CASTRO, Maurício Barros de. Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica. Rio de Janeiro: Cobogó, 2023.

DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.

LOPES, Nei & SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da história social do samba: Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

MUSSA, Alberto & SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.

SEVERIANO, Jairo. Uma história da Música Popular Brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2017.

TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Editora 34, 2012.