NELSON GONÇALVES CANTA AS “MULHERES DA NOITE” DE KENJI MIZOGUCHI

NELSON GONÇALVES CANTA AS “MULHERES DA NOITE” DE KENJI MIZOGUCHI

TELA SOCIOLÓGICA PTIANA: NELSON GONÇALVES

SESSÃO 1: DIA 10/04/2024 – 16 HORAS

SESSÃO 2: DIA 11/04/2024 – 9 HORAS

LOCAL: SALA 340B – SOCORRO LIRA (CCHL/UFPI)

      Viajando por “todos os cantos”, em anos de músicas brasileiras, trilho “a canção no tempo” e ouço a voz de um dos cantores da “época de ouro”: Antonio Gonçalves Sobral (21/06/1919 – 18/04/1998). Com uma grande quantidade de canções representativas, Nelson Gonçalves é “o cantor que tem o maior número de gravações na discografia brasileira”. Entre elas, o samba-canção “A Volta do Boêmio”, de Adelino Moreira, “o principal abastecedor do repertório de Nelson Gonçalves”. A boemia exaltada em “um clássico da música sentimental/popularesca”. As vozes douradas de Orlando Silva e Francisco Alves, “cantores carismáticos”, “têm um legítimo sucessor na figura de Nelson Gonçalves, ídolo de várias gerações” (SEVERIANO & MELLO, 2015, p.284).

        Com “seu timbre de barítono, com impressionante limpidez nas notas mais graves”, Nelson Gonçalves, “nos anos seguintes a 1953”, “desfrutou a glória da coroa como Rei do Rádio e artista do primeiro time na Rádio Nacional”, dotado de “uma projeção vocal de qualidade indiscutível” e usando “uma grande habilidade técnica”. Uma voz viril, sedutora, estilosa, de “dicção caprichada”, convicta e segura (MELLO, 2018). “Esplêndido”, na alusão de Hermínio Bello de Carvalho, “entre os heróis da música brasileira” (CARVALHO, 2015). “Os reis da voz” com “o eterno boêmio”, o “cantor excepcional” de “uma vida conturbada por amores, álcool e drogas”. Uma existência trilhada em uma discografia cantada por quem afirmou ter “o que contar” a seus “amigos e netos” (AGUIAR, 2013).

        De 1941 aos dias atuais, Nelson Gonçalves é “maXXImum” com os seus fonogramas nas coletâneas e suas seleções históricas de grandes sucessos. Faixas garimpadas do “arquétipo nacional de um (macho) brasileiro”. O cantor que é, no perfil biográfico feito por Stella Miranda, a “mais perfeita tradução” da MPB. O tradutor “que, quando canta, rasga a garganta e se transforma em rouxinol: Nelson Gonçalves, o Super-Homem Brasileiro”. O “mito” musical cantador das Marias Betânias, das Marinas, das Rosas, das normalistas e das Dolores Sierras de todos os cais portuários. As esculturais damas notívagas, deusas dos asfaltos, nas vitrines das ruas. “Mulheres da noite” nas lentes cinematográficas de Kenji Mizoguchi e no canto do boêmio seresteiro das Lapas e estações das luzes.

       No ecrã cinematográfico, a voz de Paulo Betti narra: “Nelson cantou todos os gêneros musicais. Vendeu 60 milhões de discos. Foi viciado em drogas e recuperou-se. Foi o Rei do Rádio, o rei da boemia. Foi casado 3 vezes, teve 7 filhos e 8 netos. Parou de cantar aos 78 anos e morreu poucos meses depois. Nelson Gonçalves foi excessivo na sua arte, em tudo o que fez. Alternou golpes de violência e de ternura, como se encarnasse o drama das suas canções. Ele não interpretou absolutamente nada. Ele foi mesmo aquilo tudo que cantou”.

       Documentário e drama, “o folhetim da vida real” em cenas trágicas, divertidas e apaixonadas do “pugilista-cantor” e o seu buarquiano “suburbano coração”. Sentimental e romântico em um mercado fonográfico capitalista, concorrencial, focado nas vendas quantitativas e em um cenário de fogueiras das vaidades. Paraísos e infernos astrais nas imagens do estrelato e do crepúsculo de um “Nelson boêmio, o Nelson mulherengo e o Nelson que viveu perigosamente o lema ‘sexo, drogas e samba-canção’”, conforme a escrita de Mauro Ferreira, contida na capa do DVD. Nelson reconheceu a queda, não desanimou, levantou, sacudiu a poeira e deu a volta por cima.

       Do seu vasto repertório, uma canção, em especial, traduz a sua trajetória existencial, de altos e baixos. Uma história de vida demasiadamente humana. Ouço o seu “Auto-Retrato”, por ele cantado, em 1989, na composição de Ivor Lancelotti e Paulo Cesar Pinheiro. Uma letra tradutora de uma carreira musical de sucessos e quedas. “Discos de Ouro, a glória, o dinheiro e… o vício”. O gago “metralha”, com o seu “gogó de ouro”, “conquistou elogios de Frank Sinatra” e “emocionou por mais de cinquenta anos e impressiona até a nova geração, como o roqueiro Lobão, seu fã declarado” (RIBEIRO & DUARTE, 2006, p.82). O “docudrama” Nelson Gonçalves, dirigido por Elizeu Ewald, encontra as suas imagens e cores nas palavras escritas e musicadas pelos mencionados compositores:

Se eu for contar a minha vida
Qualquer poeta escreve um drama
Já desejei estrelas e alcancei
Mas já pisei na lama
Fiz serenata à luz da Lua
Cantei paixões desiludidas
Gostei de andar à toa por aí
No meio das perdidas

Já fui senhor e dono dos cabarés
Fui recebido como um rei nos bordéis
Vivendo assim deixei meu sangue
Nos velhos botequins do mangue
Já tive o brilho da riqueza a meus pés
Mas já dormi nos pardieiros e hotéis
Na boemia da cidade
Gastei a minha mocidade
Minha louca fantasia
Foi assim me envelhecendo
Fiz de tudo que podia
E de tudo que eu fazia
Não me arrependo
Quando lembro que alegria
Quando conto me comovo
Sei que nada volta um dia
Mas eu juro que faria
Tudo de novo

AGUIAR, Ronaldo Conde. Os reis da voz. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

CARVALHO, Hermínio Bello de. Taberna da Glória e outras glórias: mil vidas entre os heróis da música brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.

MELLO, Zuza Homem de. Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958). São Paulo: Editora 34/Edições Sesc São Paulo, 2018.

RIBEIRO, Pery & DUARTE, Ana. Minhas duas estrelas: uma vida com meus pais Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. São Paulo: Globo, 2006.

SEVERIANO, Jairo & MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol.1: 1901-1957). São Paulo: Editora 34, 2015.

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